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Por muitos anos, Emílio Ivo Ulrich (foto de destaque) não conseguiu compartilhar em palavras a hediondez que viveu no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), durante a ditadura iniciada com o golpe de Estado consolidado em 1964. Ele integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e teve militares em seu encalço até que foi finalmente capturado.

Radicada em Porto Alegre, sua família não fazia ideia de seu paradeiro. Seus algozes decidiram que ficaria um ano preso, tendo passagem também pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde foram interrogadas e ficaram detidas figuras famosas. “E depois eu fiquei em liberdade vigiada. Eu tinha que assinar um livro na auditoria militar toda semana. Eu estava preso, só que estava na rua”, rememora.

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Por diversos dias de sua vida, a visão que tinha diante de si, se não eram os soldados ou superiores com patente, era a do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, do Exército, perambulando pelo complexo do que foi, na ditadura, um endereço para o qual se confluía um sem-número de vítimas cujos direitos eram sistematicamente violados. Os acontecimentos do local agora são objeto de estudo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A VPR era composta, em sua maioria, por estudantes e ex-militares e foi um dos grupos criados -, no caso, em 1968 -, como reação à ditadura. O perfil dos membros era, em geral, de dissidentes da Política Operária (Polop) e ex-integrantes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR).

Ulrich não era comunista, mas assim se assumiu para tentar se livrar da brutalidade que golpeava sua mente e seu corpo. Estratégia de sobrevivência. “Claro que eu disse que eu era comunista. Apanhei muito por dizer que não era comunista. Depois apanhei por dizer que era. Disse isso para poder me livrar do pau-de-arara”, explica ele, que, nesse contexto de acusações falsas, processou, há oito anos, o Estado, a quem responsabilizou por danos morais, sendo um dos únicos ex-presos políticos que ganharam o processo na Justiça. 

Pesquisa

O ex-preso político não pisava no DOI-Codi há anos, mas resolveu retornar ao local quando soube do projeto dos pesquisadores, finalmente colocado em prática após obterem financiamento da Unicamp e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Emílio Ivo Ulrich é uma das vítimas da mais recente ditadura militar do Brasil e pretende colaborar com a iniciativa a partir de sua memória, já que os pesquisadores dependem das lembranças de quem ficou detido no DOI-Codi para conferir sentido aos objetos e vestígios que encontraram na primeira etapa do projeto.

O projeto tem, entre diversos objetivos, preservar a memória do espaço do DOI-Codi como registro da história e alerta para o futuro. Como ressalta a coordenadora do Grupo de Trabalho Memorial Doi-Codi, Deborah Neves, não se tornava alvo de perseguição somente quem estava na luta armada, “mas qualquer pessoa que contestasse as arbitrariedades de quem estava no poder”, observa.

Mulheres vítimas

Ulrich conta que, na época em que foi pego, dividia sua casa com outros dois jovens e que os militares, além de o terem levado embora, saquearam a residência. Segundo ele, esse era um hábito dos agressores, o de roubar todos os pertences das vítimas, assim como era costume que empresários da capital paulista presenteassem os militares com dinheiro, que o usavam em festas nas quais comemoravam o assassinato de adversários. Seus dois amigos também foram presos, pelo simples fato de morarem com ele. Os três mantêm contato até hoje.

O ex-preso relata ainda que na principal unidade de torturas da capital paulista as mulheres eram vítimas duas vezes. Primeiro, por serem submetidas a torturas, e, em segundo lugar, por serem, em muitos casos, também estupradas pelos militares, algo que os registros sobre esse tempo no Brasil documentam amplamente.

No caso do DOI-Codi, porém, havia uma particularidade que transformava a experiência em algo ainda mais macabro: o fato de que a esposa de Ustra, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra, conversava com as presas políticas, argumentando que deveriam ter tido uma postura diferente, que se aproximasse mais do que ela acreditava ser o papel das mulheres no mundo. Esse fato, que eleva o nível de crueldade desse fragmento da ditadura, foi comentado pelos pesquisadores que conduzem o estudo de arqueologia no local, em coletiva de imprensa realizada nesta segunda-feira (14).

Grupo de apoio

A principal coisa que ajudou Ulrich a desfazer o nó que o impedia de falar sobre os episódios que experimentou na ditadura foi a participação em um grupo de apoio a vítimas desse período. Ele se refere às Clínicas do Testemunho, viabilizadas pelo governo Dilma Rousseff, ex-presidenta da República que também foi presa e torturada durante a ditadura militar. “Me ajudou muito a falar sobre o assunto, porque eu não falava sobre isso, eu só chorava”, conta Ulrich, que deve lançar, no próximo mês, um livro que recupera detalhes de sua trajetória tem como título Tortura sem Fim.

“Claro que o sofrimento era muito maior naquela época, depois que eu saí. Acontece que eu sempre disse, na minha vida, que a prisão passa. Agora, a tortura não acaba nunca”.

Ulrich também escreve poemas. Um deles se chama Elogio de praça e foi escrito em dezembro de 1970:

Hoje está chovendo.

O tempo em São Paulo continua ruim.

O Major Ustra não olha para os lados.

Vai em frente.

Atravessa o pátio do Doi-Codi na Rua Tutoia.

Ereto, disciplinado e determinado.

Sobe as escadas que o levam

Até as salas superiores do prédio,

Onde vai torturar os prisioneiros políticos

Que estão sendo seviciados.

E o exército brasileiro

Não quer que existam falhas

Na execução do serviço.

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