“Pincel, tinta e garra”. A campanha nas redes sociais convoca jovens de todo o país para “sair às ruas e enchê-las de memória e cores”. A missão é pintar 50 muros no Chile, desde o extremo-norte da região de Arica até o extremo-sul de Magallanes, para lembrar os 50 anos do golpe militar que encerrou o governo do socialista Salvador Allende e iniciou a ditadura liderada por Augusto Pinochet.
Quem está a frente é a estudante de artes visuais Javiera Rodriguez-Peña, da Brigada Ramona Parra, um coletivo de jovens dedicados a espalhar pelo país mensagens em defesa dos direitos sociais e políticos.
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“Queremos através da arte popular captar as demandas que buscamos desde a ditadura militar: verdade, justiça e reparação. Buscamos nossos familiares e colegas desaparecidos, o fim do negacionismo, e atrair a população com estas importantes reivindicações que não conseguimos alcançar 50 anos depois da ditadura cívico-militar”, diz Javiera, em entrevista à Agência Brasil.
As brigadas muralistas são uma tradição que remete aos anos 1960 e 1970, quando era comum ver paredes pintadas por todo o Chile com textos e imagens que expressavam o sonho de um novo mundo, sem injustiças e desigualdades. Tão logo Pinochet tomou o poder, muralistas foram perseguidos. Em um primeiro momento, as paredes foram manchadas com o sangue de muralistas fuzilados em frente a elas. Depois, os desenhos foram substituídos por paredes brancas opacas, pintadas por militares. Os que fugiram dos ataques tiveram de escolher entre a clandestinidade ou o exílio.
Os jovens muralistas eram parte de uma dinâmica nacional de propaganda política, que envolvia diferentes organizações na disputa por influência sobre a população.
“O governo Allende teve de enfrentar a oposição sem censurá-la. Teve o tempo todo que disputar espaço e visibilidade frente a uma imprensa muito articulada e desleal, muitas vezes antidemocrática, golpista e classista. Além de investir na imprensa estatal e em órgãos alternativos, partidos da coalização e outros atores sociais investiram em mecanismos que envolviam criatividade e mobilização do cenário público. Uma forma de se diferenciar dessa imprensa e propaganda de oposição, que tinha mais recursos econômicos e mais espaço”, explica a historiadora Carine Dalmás.
Origem dos movimentos
As brigadas muralistas surgiram na década de 1960. As pioneiras e mais conhecidas foram a Brigada Ramona Parra (BRP), criada por integrantes das Juventudes Comunistas do Chile (JJCC), e a Brigada Elmo Catalán (BEC), ligada à Federação da Juventude Socialista (FJS). Entre 1970 e 1973, esses grupos viveram o auge no Chile, quando o país era governado pela coligação de esquerda “Unidade Popular”, do presidente Salvador Allende.
O nome “brigada” era inspirado em organizações coletivas da União Soviética, que adotavam o termo nos anos posteriores à Revolução de 1917. Havia “brigadas” de músicos, de escritores, de artistas, entre outros, no sentido de pensar os trabalhadores como combatentes militares. Já o muralismo tinha como referência o movimento muralista mexicano, que propunha uma socialização da arte, em oposição ao individualismo burguês e às pinturas tidas como elitistas. Não pretendia ter a mesma sofisticação estética mexicana, mas defendia igualmente a articulação entre o lúdico e o político.
A BRP surgiu nas campanhas presidenciais de 1963-1964 e homenageava Ramona Parra, a primeira “mártir” das JJCC. A jovem de 19 anos morreu em 1946, durante confronto com policiais em uma manifestação da Confederação de Trabalhadores do Chile (CTCH). Agiam sob o lema “Pintaremos até o céu, até vencermos!”. Entendiam que deviam educar o povo por meio de uma arte de massa e mobilizar a sociedade em nome de um ideal socialista. As pinturas costumavam ter, em destaque, símbolos do Partido Comunista (a foice e o martelo) e outras que representavam a paz, como pombas, flores e mãos abertas. Eram indicativos da proposta chilena de alcançar o socialismo por uma transição democrática e pacífica.
A BEC surgiu em 1969 como Brigada Central, mas um ano depois mudou o nome para homenagear o guerrilheiro chileno Elmo Catalán, que foi assassinado na Bolívia depois de lutar ao lado de Che Guevara. A brigada foi diretamente influenciada pelo modelo socialista de Cuba e adotava, com frequência, imagens a favor de uma revolução armada. Eram valores, portanto, diferentes dos propostos pelo governo Allende.
Apesar das diferenças, as brigadas tinham em comum a busca pela transformação social a partir da mobilização popular.
“Era comum que os membros dessas brigadas fossem pintar vestidos de operários, porque se diziam operários da cultura. Na hora de pintar, ainda que tenham desenvolvido as próprias técnicas, se preocupavam em aplicá-las com a participação de transeuntes. As pessoas nas ruas poderiam opinar e até pintar juntos se quisessem. Havia esse lado da integração. As brigadas geralmente iam para lugares de muita visibilidade ou para bairros onde se buscava uma maior adesão da população ao projeto político”, explica Carine Dalmás.
Golpe, resistência e exílio
De forma quase imediata, logo depois do golpe militar de 1973, o governo ditatorial mobilizou agentes para aniquilar o movimento muralista. Durante muitos anos, esses grupos tiveram de se esconder e interromper as pinturas. Recorreram a meios alternativos de comunicação como panfletos, banners e posters, que eram produzidos e veiculados de forma clandestina pelo país. Aqueles que conseguiram fugir para o exterior, levaram com eles a tradição dos murais. A Brigada Ramona Parra foi uma das que teve membros atuando em cidades da Europa. De longe, denunciavam a violência e o autoritarismo do novo governo chileno.
Em 1979, com os primeiros sinais de contestação mais direta ao regime militar por meio de greves e protestos, alguns murais voltaram a ser pintados. No início da década de 1980, com a recessão econômica e taxas altas de desemprego, grupos organizados de oposição usaram os muros para apresentar demandas por melhorias e para criticar o governo. Não eram necessariamente ligados às brigadas, mas se inspiravam no legado deixado por elas.
Renascimento muralista
Com o fim da ditadura militar em 1990, tanto a Brigada Ramona Parra quanto a Brigada Elmo Catalán deixaram a clandestinidade e voltaram a pintar, sem o risco de serem mortos, muros pelas ruas do Chile. Líderes antigos, que sobreviveram ao período de perseguições e assassinatos, participam até hoje de projetos ligados ao resgate da memória do período. O que inclui registrar em livros ou acervos digitais fotografias dos murais apagados.
Para a historiadora Carine Dalmás, Pinochet foi muito estratégico ao destruir essa “estética da alegria” no passado. Mas exemplos recentes, como as manifestações de 2019, mostraram um renascimento do muralismo como instrumento de luta política.
“O que me chamou a atenção agora foi a necessidade de resgatar uma memória e uma utopia. Tanto que o Salvador Allende aparece nas imagens com uma frequência talvez até maior do que acontecia naquela propaganda dos anos 1970. E a reprodução dessas práticas e técnicas mostra que foram experiências marcantes no passado. Mesmo com toda a violência do golpe e com 17 anos de ditadura tentando apagar qualquer vestígio desse período sistematicamente, elas persistiram”.
Nas últimas décadas, as fileiras das brigadas foram renovadas com a adesão de outros jovens. Nos muros, predominam agora mensagens em defesa tanto dos direitos dos trabalhadores, como de grupos sociais específicos, como os indígenas e as mulheres. Em comum com o passado, a utopia de uma sociedade livre de hierarquias, desigualdades e explorações.
“Nosso foco é imprimir nas ruas as expressões, a cultura e a propaganda política. As temáticas que discutimos nos muros vêm das demandas da classe popular e da linha política que seguem as Juventudes Comunistas do Chile. Em geral, aquelas que defendem melhor qualidade de vida para os mais pobres, como uma infância digna, luta por moradia, educação gratuita e de qualidade, acesso universal à saúde e os direitos trabalhistas”, explica a muralista Javiera Rodriguez-Peña.
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