Sob muitos aplausos do público, Domingas Leonor da Silva, a Dona Domingas, fundadora do tradicional Grupo Flor Ribeirinha e mestra de cultura popular, fez o seu clamor. “Existe muita burocracia. Tem muitos coitadinhos que não sabem fazer projeto. E isso dificulta. Quero pedir encarecidamente: facilita um pouco mais para o nosso povo”.
O pedido de Dona Domingas foi feito durante o primeiro Encontro Nacional de Gestores da Cultura, que aconteceu na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em Vitória (ES). E não foi um clamor isolado. Durante dois dias de eventos, a reportagem da Agência Brasil escutou muitos pedidos para que as leis de incentivo à cultura do Brasil sejam mais acessíveis ao público e menos burocráticas. Só assim, defendem, ela será de fato democrática e plural.
Para Preto Zezé, conselheiro nacional da Central Única das Favelas (CUFA), a burocracia existente na linguagem dos editais dificulta que os recursos cheguem às periferias e nas populações mais vulneráveis do país. Em entrevista à Agência Brasil, ele ainda citou que essas populações enfrentam outros sérios problemas que a deixam sempre à margem desses projetos culturais.
“A maioria das organizações que estão trabalhando dentro de uma favela, muitas vezes, não tem sequer um telefone. É preciso pensar a política pública, mas como se acessa essa política? Só ter o recurso não é o bastante para descentralizá-la. É importante você se adaptar às necessidades e realidades do outro”, disse ele.
Preto Zezé ilustrou sua crítica com um exemplo. Um projeto desenvolvido na periferia para se levar mulheres ao cinema esbarrou em problemas comuns a essas mulheres. “Tínhamos a oportunidade, tínhamos o cinema, tínhamos pipoca e guaraná para todo mundo. Mas as mulheres não tinham com quem deixar os filhos ou moravam longe. Só ter a oportunidade, muitas vezes, não é tudo. É preciso pensar na coisa como um todo se não quisermos excluir populações que já são excluídas historicamente das políticas públicas”.
Segundo a atriz e poeta Elisa Lucinda, essas dificuldades acabam “excluindo ainda mais quem já é excluído”. “O que mais sofremos nesses anos todos é que, se eu for uma palhaça lá do Acre, eu não tenho a mínima ideia de que existe um mecanismo de fomento no governo federal que pode me beneficiar”. Ela defendeu que o poder público deve identificar e convocar os artistas que precisam de apoio.
“O que a política pública de inclusão vai fazer é uma coisa muito simples chamada de justiça. Sem democracia cultural, você vai excluir os Djavans, os Miltons Nascimentos, os grandes e talentosos artistas que ninguém fica conhecendo porque eles não tem oportunidades ou plataformas para mostrar sua arte e produção”, falou.
Márcio Tavares, secretário-executivo do Ministério da Cultura, admitiu que essas dificuldades “são um dos grandes gargalos” para a realização de uma política cultural comprometida com o país.
“É por isso que precisamos fazer uma mudança nos instrumentos de gestão se a gente quiser atuar no fundo e no âmago da questão e superar os dramas históricos brasileiros. A gente não supera isso só com gesto de vontade. A gente supera os dramas históricos a partir da construção de marcos e de políticas adequados e de forma estruturada, para que a gente consiga fazer com que essas políticas sejam executadas na ponta e cheguem onde a gente quer, como na Dona Domingas, por exemplo”, falou.
Alternativas ao “juridiquês”
Em entrevista à Agência Brasil, a secretária-geral da Advocacia-Geral da União (AGU), Clarice Calixto, afirmou que o decreto do fomento cultural que foi assinado pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva em março deste ano vem ajudar a diminuir essas dificuldades e aproximar a população mais vulnerável das políticas culturais. O texto estabelece regras e procedimentos para as leis de fomento cultural e outras políticas públicas culturais.
“O decreto vem numa lógica, principalmente, de simplificação e de facilitar que o acesso ao recurso à cultura chegue nas populações mais vulneráveis. Existe um desafio gigante de trabalhar a comunicação de uma maneira mais adequada para os diversos públicos. E uma das previsões que a gente faz é que os editais saiam em formatos não só de ‘juridiquês’ ou com uma cara burocrática, mas com formatos mais interessantes. O caminho é tentar soluções inovadoras para democratizar o acesso”, disse.
Segundo Clarice, o governo também tem um papel importante para ajudar a minimizar essas dificuldades. E, por isso, o Ministério da Cultura criou uma diretoria cujo papel é dar assistência a estados e municípios.
“Quem faz a cultura é a sociedade, não o estado brasileiro. Portanto, o fomento cultural é uma forma do Estado entender o seu papel de criar condições, criar um ambiente para que essa cultura floresça e para que as pessoas possam viver dignamente de cultura. Viver de cultura hoje é um enorme desafio no Brasil e é mais difícil viver de cultura quando se é negro, mulher ou se tem algum marcador social de exclusão”, finalizou.
* A repórter viajou ao Espírito Santo a convite do Itaú Cultural
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